Caixa com as cobras resgatadas pelo corpo de bombeiros nas residências de Guaramirim (SC), que foram devolvidas à natureza. Clique sobre a imagem para ampliar. A pior coisa que pode acontecer para uma serpente depois que perde o hábitat é ser encontrada e capturada viva pelos humanos. Algumas têm a sorte de receber a sentença de morte instantânea, independentemente de ser venenosa ou não. Outras, com menos sorte, são mantidas presas e, até que o alívio da morte chegue, são submetidas a intermináveis seções de tortura, passando por horrores que os mais monstruosos torturadores da história da humanidade sequer ousaram imaginar em aplicar ao pior inimigo ou criminoso.
Assim que o nosso trabalho nas escolas de Guaramirim (SC) de popularizar a biodiversidade da Mata Atlântica ficou bem conhecido, o corpo de bombeiros voluntários
* pediu nossa ajuda sobre o que fazer com uma absurda quantidade de cobras que eles resgatavam nas residências, que não parava de aumentar. Segundo a opinião de muitos, a defesa que fazemos dos animais contribuiu para atormentar a vida do pessoal do corpo de bombeiros. As pessoas já estão percebendo que é errado matar.
Mas elas ainda não percebem o quanto as serpentes são importantes na natureza e mesmo nas áreas urbanizadas. As serpentes salvam vidas humanas ao controlarem a população de ratos, que podem transmitir a bactéria da leptospirose através da urina, doença que pode ser fatal. A leptospirose mata centenas de pessoas todos os anos e a incidência vem aumentado assustadoramente, sobretudo na periferia das grandes cidades.
Eu conheci quase toda a fauna de répteis (cobras e lagartixas) da região na sede do corpo de bombeiros de Guaramirim. Mas espere aí, Lagartixas? Sim, lagartixas! Infelizmente, as pessoas telefonavam para o corpo de bombeiros, aterrorizadas, pedindo ajuda para serem salvas do ataque “iminente e mortífero” de uma inofensiva lagartixa de 5 cm. Daí a importância do nosso trabalho de popularizar a biodiversidade.
A primeira providência que tomamos foi presentear a corporação com guias de identificação de serpentes. Eles conheciam bem as três espécies venenosas da região, mas tinham dúvidas sobre as demais. E quanto às lagartixas, explicamos que no Brasil não temos nenhuma espécie de lagarto venenoso e que no Planeta existe apenas duas espécies, que vivem em ilhas, bem longe daqui.
Então, eles aprenderam a reconhecer bem todas as espécies e adotar um procedimento simples: soltá-las na mata mais próxima da residência onde ocorreu a captura. Mas antes de se deslocar até a residência fazer uma tentativa de tranqüilizar a pessoa e, dependendo do local onde a cobra se encontra, sugerir que a deixe em paz que ela vai embora.
Teve uma história interessante de uma cobra que apareceu no pátio de uma escola na hora do recreio dos alunos. A zeladora não teve dúvida e pegou um cabo de vassoura para mata-la. Os alunos a impediram aos gritos: “A Elza disse que é só esperar um pouco que ela vai embora”. E a cobra foi salva e pode seguir sua jornada.
Por muito tempo, todas as cobras venenosas capturadas,
jararacas e
jararacuçus eram devolvidas para a natureza nas matas preservadas de Guaramirim.
O que me intrigava era aparecer tantas
jaracuçus nas residências, pois é uma serpente que só ocorre em matas bem preservadas. Descobrimos algo supreendente: as
jararacuçus estavam sendo resgatadas nas propriedades rurais. Agricultores estavam telefonando para o corpo de bombeiros solicitando o resgate de cobras até no meio das matas preservadas. Segundo eles, as
jararacuçus só surgiam na região do município onde fica a RPPN Santuário Rã-bugio, a parte que fica encostada na Serra do Mar, justamente a que é mais preservada no município.
Jararacuçu, jararaca e uma inofensiva dormideira (que está embaixo da jararaca) resgatadas nas residências e propriedades rurais pelo corpo de bombeiro de Guaramirim (SC). Todas foram devolvidas à natureza.
Data da foto: 29/11/2002. Clique sobre a imagem para ampliar.Teve um resgate de
jararacuçu que foi engraçado. Ocorreu na propriedade de um agricultor que mora a 300 metros da RPPN. Ele telefonou para o corpo de bombeiros que se deslocou 15 km com a viatura para fazer o translado de 300 metros da
jararacuçu, libertada imediatamente na RPPN. Acho que não passava pela cabeça desse agricultor que incluímos também as serpentes na defesa que fazemos da biodiversidade. O mais provável é que ele queria ver a
jararacuçu bem longe dali, como se fosse a única que habitasse aquelas extensas matas preservadas.
O caso mais difícil de devolução para a natureza foi o da maior
jararacuçu que alguém já encontrou na região. Também foi capturada nas proximidades da RPPN em uma mata preservada de um agricultor que chamou o corpo de bombeiro ao ver a cobra no meio da mata, enrolada, dormindo tranquilamente. Por uma feliz circunstância, a Elza ficou sabendo do “achado” surpreendente. Mas já foram logo avisando que aquela jararacuçu não seria devolvida à natureza, pois o comandante do corpo de bombeiros, ao qual o de Guaramirim está subordinado, queria esta cobra, custe o que custar.
A Elza ficou desesperada e na maior diplomacia lutou sem tréguas para convencer o comandante da unidade de Guaramirim a desobedecer a ordem superior e devolver a cobra à mamãe natureza. Chegou ao extremo de precisar envolver Deus nos apelos.
Então, comandante de Guaramirim se rendeu e acatou os argumentos da Elza. Atendendo minha sugestão (para que não fique dúvida sobre nossas boas intenções), a Elza pediu para o comandante acompanha-la até uma mata preservada na Serra do Mar e testemunhar a soltura desta criatura, um momento mágico para todos nós, seres humanos, que foi registrado
neste vídeoAcho que foi logo após este dia que recebemos uma notícia triste de que as serpentes venenosas não seriam mais libertadas e teriam que ser necessariamente encaminhadas para o corpo de bombeiros de Jaraguá do Sul, que estava concentrando todas as serpentes capturadas nos municípios da região do vale o rio Itapocu para enviá-las a algum lugar.
Nas mãos de traficantes de animais ou não, o destino destas serpentes será invariavelmente cruel, conforme escrevi no primeiro parágrafo. A quantidade de cobras
jararaca e
jararacuçu que eles recebem é tão grande que sequer se dão ao luxo de alimentá-las após fazer a extração de veneno, conforme a constatação da Polícia Federal na operação que prendeu um grande receptador dias atrás (veja a
matéria Diário Catarinense, 10/06/2010) . O veneno é extraído com muita crueldade e a cobra jogada em uma caixa e se não morrer logo, vai para uma nova seção de tortura para extração do veneno, que vale uma fortuna.
Nesta
matéria da Radio Jaraguá AM de 07/01/2010, sobre a captura de cobras nas residências, repare que o corpo de bombeiros de Guaramirim diz algo diferente dos demais. Está aí o resultado do nosso trabalho de educação ambiental. As pessoas precisam ser educadas para que tolerem mais a presença de animais silvestres que estão ficando sem áreas naturais para viverem.
* Em Santa Catarina o corpo de bombeiros é constituído por voluntários e não uma divisão da polícia militar como nos outros Estados.